quarta-feira, 31 de março de 2010

notas para um livro bonito

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.....Eu e meu pai no centro. Manhã de sábado. Ele me leva pela mão.
.....Vamos entrar aqui, comprar um sapato pra você.
.....Compramos. Meu primeiro par de sapatos de couro, canoa em dia de chuva na Rua XV. Não é 1987, eu não tenho oito/nove anos – é já esse poema.
.....Boca Maldita. O prefeito discursa idiossincrasias em um palanque improvisado. Mas homens públicos nunca serviram de bóia salva-vida.
.....Meu pai conhece o engraxate mais adiante. Ele esfregava com ritmo o escuro dos próximos passos que darei na vida. A chuva. O pano. Os sapatos. A cadeira do engraxate é uma ilha segura num mar de transeuntes e ambulantes. Meu pai paga. Leva-me.
.....Paramos pra um frapê na Confeitaria das Famílias. Presencio algo, com a imagem como que tenho um alumbramento. Sem pestanejar observo um homem gordo que na mesa em frente olha do mesmo modo pra um objeto de papel. Olho os pés do gordo, sapatos pretos, brilhantes.
.....Um leitor, digo a meu pai, que assente.
.....Saímos dali. Guarda-chuva aberto. A graxa preta nos meus pés exala o sabor de longas distâncias. Estamos voltando pra casa pisando paralelepípedos encharcados.

segunda-feira, 29 de março de 2010

notas para um livro bonito

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.....Minha existência fosse uma canção de apaixonar a chuva. E tempestades de meus olhos iniciassem o céu inteiro onde eu mergulhasse de uma vez por todas sem escafandro nem bóia de braço. Ou se eu pudesse ser alguém movediço, do tipo que sufoca os outros dentro da barriga. E se eu fosse bom em chegar perto deslizando numa exibição espetacular de não ser notado. E se eu soubesse definitivamente jamais canonizar o meu desejo. Ou se eu não precisasse consultar o dermatologista para compreender de que modo a luz que certas pessoas emanam me escalpela. Isso se eu não admitisse mais firmar platonismos. E se não gritasse aguda a carne diante de olhares tão meigos que passam a ser anzóis em meus poros. E se eu não mais tropeçasse no amor perfeito dizendo ai ai. E se eu não presenciasse de novo e de novo todas essas desenvolturas que aprisionam. E se eu fosse esse rouxinol envenenado de frio que na minha varanda se esconde da chuva.

antologia marcelo camelo

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sábado, 27 de março de 2010

exercício de impressão sobre teatro

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.....Variações do solilóquio do Lucky
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.....Por que continuar tudo isso? Esse desejo do eterno espetáculo, esse show, esse cansaço, esse ensaio, esse borrão? Primeiro, porque os vanguardistas se acabaram. Depois, porque adoro a pergunta “você não tem um faz-me-rir aí?” E pra especular pra que serve uma canção, pra que serve um poema. E pra pensar sobre a comunhão da necessidade com a finalidade. E porque os vanguardistas se acabaram. Mas por que os vanguardistas se acabaram? Porque os vanguardistas não querem acabar. E também porque os artistas são ou comprometidos meramente com ego e dinheiro, ou são uns derrotados e desiludidos que precisam de ajuda. Que mais? Ah, pra me perguntar se somos ingênuos criticando os vizinhos, resumindo tudo em ter humor ou não ter (a obra crítica, que se vale de elementos irônicos, cínicos e humorísticos, será significativa?). E porque não suporto ver gente se matando, dando tiro na cabeça, saltando de prédio, pisando fundo até perder o controle, justamente porque sei que não temos controle de nada, porque qualquer um pode chegar ao ponto de entrar num cinema ou numa universidade e meter bronca e depois estourar os próprios miolos. E porque pretendo fazer algo pretensioso. Ou seja, um espetáculo, uma performance, um embuste, um solo de dança contemporânea, um bate papo sobre arte, um monólogo besteirol, uma comédia inglesa, um recital, uma filosofia cara e barata sobre os problemas atuais da humanidade e da minha rua e da minha casa, ou nada disso, ou mais. E porque quero fazer referência e reverência direta à Curitiba, e isso significa acesso ao coração, tanto ao coração dos clichês mais patéticos quanto da verdade mais radical que pode existir. Porque quero ser esse ser humano que frequenta por alguns minutos um lugar sagrado, ou um abismo, ou uma sala de bate-papos qual um chat na Internet. Porque quero ter a convicção de estar no palco antes como ser humano do que como artista, em comunicação direta com a platéia, que ao mesmo tempo em que assiste ao trabalho está sendo assistida por mim, o que pode promover admiração, respeito, diálogo e, até mesmo, repulsa. Porque pretendo que a minha seja a nossa. E que a nossa seja uma obra aberta quanto mais específica a minha for. E porque tudo que estou dizendo parece pomposo, mas a procura maior é pela simplicidade, de fácil acesso (fodam-se os herméticos), porém pretendendo ser como uma cebola, do cheiro ao trabalho de descascá-la, das camadas superficiais ao choro irrompido sem que tenhamos qualquer controle sobre ele. Ou porque, talvez, todo o relato acima deva ser ignorado e substituído por apenas uma informação, bastante exata: Estão aqui o ator, a platéia, o palco como um abismo sobre o qual flutua-se, mas sem subterfúgios, sem subterfúgios, sem subterfúgios. E também porque as platéias estão ávidas por vingança, sabe. E porque tenho que refletir, tenho que refletir, tenho que refletir. E porque sei que não sou nem serei bem entendido. E porque fico pensando o que seria de um Plá com uma boa produtora, uma boa figurinista, um bom pessoal de marketing ao lado dele. E Porque só trago coisas assim à conversa quando abrem espaço para conversa, não imponho nada, mas se houver brecha estarei aqui, e isso é louvável. Porque quando abrem-se os experimentos para discussão, espera-se que algo seja discutido, não é mesmo? E também porque toda conversa é dolorosa se toca pontos nevráugicos. E porque ninguém é burro (só o burro). Porque esse projeto é justo, válido, caro (não só no sentido financeiro) e necessário, talvez tão necessário quanto um filme do Schwarzenegger, ou um quadro do Iberê Camargo que, afinal de contas, do ponto de vista (não da arte) da indústria cultural, são a mesmíssima coisa (eu disse “coisa”). E porque as platéias estão ávidas por vingança. E porque as produtoras estão de parabéns (é aniversário delas?), o conhecimento que dominam é o que talvez seja a grande sacadinha artística de nosso tempo. E também porque eu quero propagar o ridículo da frase (em toda sua fragilidade humana) “aqui só aceitamos elogios”. E porque não estamos falando de fantasia, né? E porque levo fé que você também está cansado de solos de guitarra no meio de um roquinho rouco. E porque, por mais que essa seja a maior bomba atômica que você já presenciou, sempre haverá inteligência/medo, diversão/sofrimento e empenho/desespero (no sentido também de desesperança) de quem está em cena. E porque sempre deve haver crítica no próprio objeto apresentado. E porque dinheiro nos deixa a todos nervosos e felizes. E porque a ganância é feia e o poder não terá outra alternativa que não seja vingar-se com um câncer em si mesmo (ouviram bem!?). E porque eu quero dançar, só isso, eu quero dançar isso que venho chamando de O butô do Mick Jagger. E porque pretendo enrolar a língua feito uma perereca no meio do meu solilóquio. E porque a vida é mais humana quando eu sou humano. E também pra amarrar a boca com um caqui enquanto escuto o solilóquio das trevas que, inevitavelmente, acompanham todos os artistas. E porque a poesia é erro. E porque quero gritar até ficar rouco. E ficar rouco até perder a voz. E perdida a voz, continuar gritando, e a isso chamar enxame e não vexame. E porque só a poesia é acerto. E pra fazer becape dos pensamentos fugidios. E pra aprender e cantar a música mais linda que já ouviu na vida. E pra saber o que fazer com o Mick Tayson que tem dentro de mim. E pra fazer dancinhas dirigidas por Nina Rosa Sá, com Singin' In The Rain tocando ao fundo. E pra estudar (estudar não, presenciar) o trabalho de Sainkho Namchylak. E pra dizer que a arte não representa seu autor. E pra dizer que só a arte representa seu autor. E pra dizer que o conceito de autoria na arte é uma falácia. E pra fotografar o sotoque do curitibano típico. E pra anunciar um réquiem. E pra amarrar a dor à solidão com fio e agulha. E pra contar outra estória, a mesma história, desenvolvida por um tipo de tecnologia muitíssimo humana e antiga, a tecnologia do afeto.

sábado, 20 de março de 2010

festival de curitiba

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Ou o ator é inteligente ou representa. Se representa, não pode ser inteligente.
Nelson Rodrigues

quinta-feira, 18 de março de 2010

domingo, 14 de março de 2010

e também agasalho

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.....E também agasalho

.....A mãe fez ele levantar cedo.
.....Quase como um sonâmbulo, tomou o Nescau. Mastigou o misto-quente.
.....Numa alegria antecipada, de morna cumplicidade, a mãe lhe deu banho. Escolheu uma roupa bonita, mas confortável. A melhor entre as melhores roupas de domingo.
.....Penteou seus cabelos macios. Perfume no pescoço.
.....A mochila nas costas, com uma tapawer dentro levando o lanche, para caso fosse necessário.
.....Ainda, cueca, par de meias, camiseta, calça. E também agasalho, porque de noitinha, quando ele o pai estivessem voltando do passeio, ia esfriar.
.....Mãe, Vila Velha é legal?
.....É lindo lá, filho.
.....E a alminha dele vibrava. Imaginava a Vila de enormes formações rochosas. Segundo a tia da escola, muito antigamente tinha sido fundo de mar e, depois, um verdadeiro parque dos Dinossauros.
.....Mãe, ainda tem Dinossauros lá?
.....Não sei, querido, acho que não, mas quem sabe teu pai conhece alguma passagem secreta, daí vocês atravessam e acabem encontrando algum.
.....É, legal.
.....E mais uma vez seus olhinhos brilharam e a mãe quase chorou. Então, acabou de arrumá-lo. E ele, mais que eufórico, se colocou na portaria do prédio em alerta. Sentadinho, a esperar e suspender passagens mágicas.
.....Nove da manhã. Dez, onze horas. Meio-dia. E o pai não veio.

sexta-feira, 12 de março de 2010

canhãozinho alemão

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.....Canhãozinho alemão

.....é um canhãozinho alemão
.....mas com teto solar
.....ar condicionado
.....injeção eletrônica
.....direção hidráulica
.....macio
.....não faz barulho nenhum
.....quando você vê
.....o velocímetro tá em 160
.....culpa minha?
.....na hora você nem sente
.....é a adrenalina
.....o sangue entrando em combustão
.....quando acordei tava aqui
.....e assim
.....e eu vou lá me lembrar se o airbag
.....abriu ou não

quarta-feira, 10 de março de 2010

se te conto uma mentira

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parabéns, versão socialista: parabéns de consumo / parabéns materiais / parabéns de produção / para Mercedes Bens / pra ele tudo! / naaadaaa

não tem tese nem antítese, teoria não tem não, também não tem filosofia, é só isso mesmo: socar socar socar o nariz dos teus sonhos

pra mim, manifesto mesmo foi quando Dolly veio à publico e falou: despeça a sua alma gêmea, encontre o seu clone

não se iluda, ou melhor, se iluda sim, o inverossímel também acontece

uma laranja masoquista me olha da fruteira e, enfática, diz: só vou ficar satisfeita quando for descascada e espremida até o bagaço. seja!

péssimo dia pra estar assim tão católico

péssimo dia pra estar assim nem um pouco católico

acabo de escutar essa de um garoto de 22 anos: eu comeria a Hebe

um ataque: os vanguardistas se acabaram porque os vanguardistas não querem acabar

e uma defesa: alguns lêem muitos livros e vão a todas as peças de teatro pra fazer igual. outros, pra fazer diferente

sex é a bailarina cheia de curvas que tá se desmanchando nesse pirex (desculpa, não tô me aguentando. prometo, foi a última)

denorex é o nome de um shampu que virou banda oitentista em plenos anos 2.000 aqui em Curitiba

mentex é um modo de dizer pro teu amigo que vive fazendo merda que ele é um demente. tipo: pô, velho, cê tá mentex, comé que faz uma dessas?

relax é o nome do meu rex

relax é o nome do meu rex mentex que toca banjo na banda denorex (haha, aiai, que estúpido)

a música, minha paz. se agora me adoece, depois me fortalece mais. solidão que desmanchasse na fumaça de um incenso, a música é quando venço

literatura urbana: hoje, assim como tem o fast food, tem o fast foda

jornalismo investigativo: extra, extra, uma mãe acaba de vender a filha a 30 reais, por uma hora

conto policial: o sujeito era um amolador de facas da pior qualidade... ou seja, um assassino dos mais toscos

conto policial: essas coisas acontecem, mesmo os mais bonzinhos podem sair por aí mais hora menos hora dando machadada em velhinhas

o caos faz barulho? o amor também

quem disse que o caos faz barulho? meu universo subjetivo metido a poeta

e o amor, faz barulho?

agora, de fato não penso o caos de maneira científica... pra mim o caos é quando alguém diz: putz, minha vida está um caos

veja como a poesia pode ser canalha. que tal isso? o caos faz barulho? o amor também não

perfeito. seja: o caos faz barulho? o amor também / o caos faz barulho? amor também não. haha. aí vai a nossa "teria do caos"

aliás, "nossa teoria do amor". fica bem melhor assim... eu querendo ser cientista e você cheio de poesia pra dar

sobre o acaso: um lance de dados jamais abolirá o azar

quem (mesmo cientistas) garante que não somos os próprios dinossauros, um tiquinho modificados pelos milênios, é verdade, mas ainda assim?

estou no Fran´s Café. e aqui no Fran´s Café há um problema. o problema é que as garotas bonitas sempre são a namorada de alguém

ler é esforço. é um prazer físico, assim como caminhar quando não se é obrigado a nada. portanto, ler não se lê, caminha-se um livro

de que modo se lê um livro de mil páginas? veja, para se ler um livro de mil páginas, é preciso fazê-lo palavra por palavra, uma a uma

lágrimas de crocodilo... por que essa maldade com o crocodilo? ele não tem o direito, afinal, de chorar a perda do amor da crocodila?

era alguém mostrar uma canção, poema decorado, fazer micagem qualquer, e logo você ouvia ele vibrando com aquele maldito "ponto pra equipe"

confeccionava casaquinhos pro orfanato. até que um dia, tricotando, a velha estacou: crianças chatas, que é que têm que ter dois braços!?

não queira dar uma de esperto... sempre tem alguém vendo você tirar meleca do nariz

o detalhe, o mínimo detalhe... só o detalhe tem profundidade

não sou nada sem o meu violão... e olha que eu nem sequer sei, assim de verdade mesmo, tocar violão

não sou nada sem o meu violão. o problema é que, no final das contas, tudo o que canto soa como eu estivesse lambendo o chão que ela passa

nem mesmo essa canção serve pra dizer adeus. se nela como que aceno um lenço branco de cima do navio, é só por não mais saber nenhuma prece

cara, só lamento! posto assim, sobram 2 opções: ou ser um nada, ou lamber o chão. por respeito aos garis, não pare de cantar

então vou fazer isso, amigo, vou sair com os garis pedindo que me deixem fazer serenatas com eles

segura o cigarro. acende. larga o isqueiro. segura a garrafa. bebe. a lua na janela. não sabe dizer se está sendo uma noite difícil ou não

levanta. em seguida senta. traga. bebe. levanta. e novamente senta. cães uivam. vai até a janela. o ar está frio. é lua cheia. e nem sinal

é necessário acordar o corpo, sabe. taí um método eficaz de dialogar com a felicidade. o corpo acordado é o que está de acordo com si mesmo

se eu enfiei o pé na jaca? porra, meu irmão, a jaca é minha pantufa

todo mundo gosta de mim, só não gosta quem ainda não me conhece — foi o que disse o homem que ninguém conhecia

pra eu me lembrar: ninguém é burro... só o burro

pra eu sempre me lembrar: a vida é mais humana quando a gente é humano

isso fosse arte e não a bosta dum confessionário, usaria um pseudônimo... seja, luiz felipe leprevost é pseudônimo de luiz felipe leprevost

cantar, cantar, cantar, seria tudo que poderia fazer por mim, não fosse o fato de que, pra mim, cantar é o mesmo que ter um enfarte depois do outro

aguente-se, amigo, aguente-se... é tudo que posso dizer pra mim nesse momento

negação seguida de negação, e aqui estou eu novamente doendo em versos... poetas infames

como estou me sentindo? como se eu estivesse abraçado a uma colméia

ou como eu fosse um peixe que, invés de nadando em águas claras, estivesse mergulhado em miragens

e é inevitável reparar como os pneus de trás sempre seguem os da frente

o coração de algumas pessoas não passa de um pneu rugoso

tudo como se só fosse possível filosofar de verdade no insuportável

o amor só deita na cama de quem não está só

a cama... grande porcaria ter uma solidão king size
já me amaram como a um filho que não nasceu, e isso não presta

se não há nada em minha carne, por que nesse momento sinto como ela fosse o mármore fervilhante de feridas supuradas?

o cérebro é um fosso, e lá no fundo dele reside um bando de crocodilos vorazes sem cérebro

sabe, os gatos que ouvimos chorar de madrugada são a reencarnação de crianças mortas prematuramente

bilhete suicida: bom, agora vou me retirando, tenho muito o que fazer ainda hoje. beijabraço pra quem fica

Curitiba... cidade onde até o girassol tem torcicolo, as pedras das calçadas mais duras pedem colo e os roqueiros mais tolos tocam o pau
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terça-feira, 9 de março de 2010

churrasconha

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.....Churrasconha
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.....Manhã. Domingão. O Barigüi já lotaço. Desde oito horas a Rô e o Rato já tavam no quiosque. O Pato, maconheiro-mor, já mandando ver no vinhote e na erva. Eu cheguei um pouco depois. Mas pra mim ainda era cedo pra caralho. É que se você não chega cedo, não consegue luar. Os quiosques são disputados pra caralho. Tinha uns três finais de semana que a gente tava tentando fazer um churras, mas nunca dava certo. Dessa vez a gente resolveu ir virados da naite, pra garantir. Se demos bem, a gente pegou um bem escondidinho, meio enfiado no mato. Quiosquinho vip, tá ligado. Mesmo assim tem que ficar esperto, os cuzão da Guarda-Municipal não dão folga. A gente não pode dar mole que eles já vão descendo a porrada. Mas, pô, esse lugarzinho tava massa pra caralho. Aos poucos a piazada foi chegando. O Rudinei, a Anta, o Sâque, o Meia-calça e o Tombo. O Sâque me falou que tinha tomado um ácido ontem de noite e que tava até agora na pira, aí foi sacando a viola, puro aço berrador. Era que era um Raulzito atrás do outro. O Sâque tem um repertório massa pra caralho, tá ligado. A Anta tem esse apelido, mas ela é gostosa pra caralho. Eu piro nela um monte, mas ela não dá mole. Ela trouxe um saco enorme de pão e todo mundo já foi comendo pão puro, porque a gente ainda tava preparando o fogo com a porra do carvão que não queria queimar de jeito nenhum. Daí a Rô e o Rato que, esqueci de dizer, são juntados, eles tinham ficado encarregados da maionese e dos apetrechos de churrasco e tal. A Rô pediu pro pai dela, na verdade. E o pai da Rô pegou as parada lá da turma do futebol dele. Uns garfão e uns espeto. E a gente ficou pirando de lutinha de espada. O Rudi trouxe a linguiça e a carne, uns alcatrão cavalo mesmo, tá ligado. É que ele tem uma prima que meio que trepa com o Carnicinha, que é o filho do Carniça, que é dono de um açougue no São Brás, que é super perto ali de onde o Rudi mora. Ah, só um parêntese, o Rudi não tem apelido porque quando o Meia-Calça foi meter o apelido de Hulk no Rudi, o Rudi destruiu o Meia-calça na porrada. O pau que o Meia-calça, que é meio bicha e um dia disse pra piazada que no inverno usa por baixo da calça Meia-calça, e é por isso que a gente chama ele assim, claro né... O pau que o retardado levou do Rudi ficou histórico. Tanto é que o Meia-Calça meio que manca até hoje. A piazada só deixa ele andar junto porque ele meio que é a nossa empregada. Precisa ir comprar cigarro, manda o Meia-calça. Faltou álcool, vai o Meia-calça. O Carnicinha me falou uma vez que o Rudi deixa o Meia-calça pagar boquete pra ele. Sei lá, não duvido de porra nenhuma. Mas que se foda, tá ligado. Não vai ser eu que vai pagar com a cara do Rudi, nem fudendo. O Rudi é casca, já teve preso e tudo. O Tombo é outro que se caga do Rudi. E desse vez eu até que me dei bem. O Rudi deu a ordem: Tombo, cê leva as bera pro churras. E você, Danhãnha, leva uma garrafa de chiboca. Belê, chiboca era o que não faltava pra mim. É só mocá uma do estoque do Bar do Zeuzão quando eu fosse fazer um bico lá, e já era. E foi por aí, a manhã passando e a piazada já no grau. A gente tava arregado de cerva, carne, pinga e, o principal, a erva mágica do Patolino, tá ligado. O bagulho era pancadão. Acho que a gente ficou umas três horas, tudo lôco, inventando essa música “dragão, dragão / quem nunca agarrou um dragão, dragão / quem nunca agarrou um dragão”. Ali pelas quatro da tarde, todo mundo tava já lesado pra caralho. Eu tava burro, babando na bluseira que o Sâque tava metendo na viola. E a bichinha chora, viu. O Sâque é o Kurt Cobain da galera. A merda de tudo é que a Anta é meio afinzinha do Sâque. Daí quando ela começa se abrir demais pra ele, eu fico meio puto, tá ligado, porque eu sou meio afim da Anta. Eu fico mais puto ainda principalmente porque o Sâque tá cagando pra Anta. E ela, mesmo assim, é louquinha pra dar pra ele. Mas na real o Sâque tá cangando pra todas as gurias. Acho que é porque as gurias ficam tudo babando nele. Ele pega quem ele quiser. Mas ele nunca quer ninguém. Então eu nem entendi porque que ele entrou na pira de meter uns chifre no Rato com a Rô. Acho que é porque o Sâque considera o Rato um pau no cu do caralho, pleyboyzão de merda. E na real o Rato é mesmo metido pra caralho. Mas eu sempre me dei bem com ele. Então que se fodam ele e o Sâque. Deu cagada porque a gente vacilou. Não podia ter perdido o controle, tá ligado. Já era uma seis da tarde, tava todo mundo retardado. Aí o Sâque foi mijar no mato pela terceira vez. E a idiota da Rô foi atrás de novo. Porra, bem que eles podiam pegar mais leve, fazendo merda na frente do namorado da guria. Puta vacilão o Sâque. Eu nem reparei que o Rato tinha sumido também. Só lembro que eu tava deitado na grama, olhando o ceuzão cheio de estrela. Feliz pra caralho porque a Anta tinha pedido meu moletom emprestado, porque tava caindo um sereno frio. E ela, depois de vestir o moleta, até deitou ali do meu lado. E a gente ficou dando bola numa ponta bem docinha. Foi aí que de repente, porra, a Rô apareceu em cima da gente, pálida que nem um fantasma, tentando gritar sem conseguir, com um espeto atravessado na barriga.

domingo, 7 de março de 2010

uma epígrafe

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a poesia impede a vida
de virar literatura
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Fabrício Corsaletti

douglas kim

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mas quem sou eu pra dizer o que é possível
e o que é impossível
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Mas quem sou eu para dizer o que é possível e o que é impossível. Quando acaba, até um enforcamento é bonito. Digo isso e imediatamente surge a dúvida: existe algum alívio desnecessário? Mors tua vita mea. Não importa se permanecemos leais aos nossos fracassos ou satisfeitos com os nossos minúsculos heroísmos. Um dos períodos mais intensos da minha vida foi quando não quis fazer nada, não realizei nada. Todas as possibilidades, essas odaliscas que ajudam a concretizar os desejos, esfregavam seus véus no meu rosto e dançavam com fervor. Nessa vida não importa por qual porta você entre, a saída é a mesma para todos. Não é a mentira, é a verdade que é intolerável, sabemos todos. Douglas Kim.
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quinta-feira, 4 de março de 2010

a ala dos desconsolados


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Meu amigo, o poeta mestre Ivan Justen Santana, tem feito uma série de traduções das poesias do Bob Dylan. Há um mês e meio mais ou menos, pedi a versão de Desolation Row, uma das canções do Dylan que mais me comovem. Generosamente, Ivan colocou mãos à obra, e aqui está, não poderia ser mais perfeito. Lá no blog dele estão outros clássicos do rapsodo norte-americano. http://ossurtado.blogspot.com/.

A ala dos desconsolados
(Desolation row)
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Vendem-se postais do enforcamento
Pintam-se os passaportes de marrom
O salão de beleza lotou de marinheiros
E esses dias o circo chegou
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Lá vem o comissário cego
Mantido em transe permanente
Uma mão atada ao cara da corda bamba
A outra nas suas calças de sempre
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E a tropa de choque está inquieta
Precisam ser movimentados
Enquanto Lady e eu observamos
Da Ala dos Desconsolados
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Cinderela parece tão acessível
“Os iguais se reconhecem”, sorri ela
E põe as mãos nos bolsos de trás
Feito uma Bette Davis Cinderela
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Entra Romeo, gemendo queixas
“Acho que eu sou teu proprietário”
E alguém diz, “Lugar errado, amigo,
Saia sem pagar de otário”
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E o único som que sobra
Após sirenes e ossos quebrados
É Cinderela fazendo a faxina
Na Ala dos Desconsolados
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Agora a lua está quase oculta
Estrelas se velam em segredo
Mesmo a dama que lê a sorte
Levou suas coisas pra dentro
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Todos menos Caim e Abel
E o corcunda de Notre Dame
Todos estão fazendo amor
Ou esperando a tempestade
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E o Bom Samaritano veste-se
Tomando todos os cuidados
Ele vai sair no desfile desta noite
Na Ala dos Desconsolados
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Ofélia está embaixo da janela
Confesso que temo muito por ela
Após completar vinte e dois anos
Já é uma solteirona velha
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Pra ela, a morte é bem romântica
E ela veste um colete blindado
Sua profissão é a sua religião
Sua inação é o seu pecado
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E embora ao arco-íris de Noé
Os olhos dela estejam fixados
Ela gasta seu tempo espreitando
A Ala dos Desconsolados
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Einstein, disfarçado de Robin Hood
Leva as memórias num baú
Passou por aqui uma hora atrás
Com seu amigo, um monge cru
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Parecia tão imaculadamente assustador
Enquanto filava um cigarro
E aí saiu farejando canos de esgoto
E recitando um ABC bizarro
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Você nem se incomodaria em vê-lo
Mas ele já foi famoso por esses lados
Tocava um violino elétrico
Na Ala dos Desconsolados
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O Dr. Sujeira mantém seu mundo
Dentro dum caneco de couro
E todos os seus pacientes sem sexo
Querem estourar aquele couro
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A enfermeira, uma triste qualquer
Administra o cianureto aos traumas
Ela também guarda os cartões que dizem
“Tende piedade desta alma”
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Eles todos brincam com apitinhos
Pode-se ouvi-los a soprá-los
Se esticar a cabeça pra fora o suficiente
Da Ala dos Desconsolados
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Do outro lado da rua, pregam cortinas
E se preparam prum bacanal
Pois então é o Fantasma da Ópera
A perfeita imagem sacerdotal
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Alimentam Casanova às colheradas
Pra ele se sentir mais à vontade
E aí o matarão de autoconfiança
Depois de o envenenarem com frases
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E o Fantasma grita às magricelas
“Sumam daqui os que ficaram abalados
Pois Casanova foi punido por ter ido
À Ala dos Desconsolados”
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Agora à meia-noite todos os agentes
E a equipe de super-homens
Saem à cata de todas as pessoas
Que sabem mais que os supers podem
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Então levam-nas até a fábrica
Onde a máquina de enfarte
É afivelada aos ombros delas
E logo depois eles trazem
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O querosene dos castelos
E dos Seguros os homens magros
Vêm conferir que ninguém escapa
Da Ala dos Desconsolados
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Seja louvado o Netuno de Nero
O Titanic navega à aurora
E agora todo mundo grita
“De qual lado você mora?”
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E Ezra Pound e T. S. Eliot
Lutam na torre de controle
Enquanto calipsocantores riem deles
E pescadores trazem flores
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Ali entre as janelas do oceano
Onde sereias têm seus prados
E ninguém precisa pensar muito
Na Ala dos Desconsolados
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Sim, recebi sua carta ontem
(Foi quando quebrou a maçaneta)
Me perguntar se estou indo bem
Foi algum tipo de brincadeira?
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Todos esses que você menciona
Sim, eu conheço, são uns toscos
Tive que lhes dar nomes diferentes
E rearranjar todos os seus rostos
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Agora eu já não leio mais tão bem
Não mande mais estes seus recados
A não ser que sejam remetidos
Da Ala dos Desconsolados
Bob Dylan
Versão brasileira: Ivan Justen Santana

uma epígrafe

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.....Minha vida se dispersa continuamente. Como um rio que sai do leito e transborda sobre a terra. Então, tenho de abandonar muitas coisas e pensar no que é útil e bom. Só assim controlo as águas e as faço voltar ao seu leito. É como um pêndulo. Foi sempre assim. Já me acostumei a viver com essas inundações que arrasam tudo, e depois a calma, o controle, a solidão, o silêncio. É como uma longa aprendizagem. Infinita. Desconfio que nunca se concluirá. Pedro Juan Gutiérrez.

terça-feira, 2 de março de 2010

antologia luis capucho

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duas epígrafes

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.....O amor é uma espécie de preconceito. A gente ama o que precisa, ama o que faz a gente se sentir bem, ama o que é conveniente. Como pode dizer que ama uma pessoa quando há dez mil outras no mundo que você amaria mais se conhecesse? Mas a gente nunca conhece.
Charles Bukowski
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.....Tente me expelir / ao me sentir ausente
Vinicius de Moraes

segunda-feira, 1 de março de 2010